domingo, 20 de janeiro de 2008

Épico.

Ela entrou voando pela janela. Atrás da mesa do computador.
- Mãe! Uma barata!
Como assim “Mãe! Uma barata!”? Ele tem mais anos nas costas do que dedos nas mãos.
- Pega a vassoura e mata esse bicho, moleque!

Ele corre até a sala.
- Bicho! A barata gigante entrou voando, ta atrás da mesa do computador, é a barata do demônio, vou lá matar aquele troço!
Certo, agora que já havia narrado sua futura façanha para todos na casa ele estava pronto para empunhar sua espada e lutar contra aquele ser traiçoeiro. Por espada, entenda vassoura, e por “ser traiçoeiro”, entenda barata.

Área de serviço. É agora. Mas onde está a vassoura? O tempo ruge e o inimigo é sagaz.
- Um rodo! A vassoura só pode estar por aqui. – mas não estava.
Atrás da porta! Para espantar más visitas. Ali sim ela estava.
Armas em punho, rumo ao combate.

- Agora você vai conhecer o lugar onde que Judas perdeu as botas, maldita! – ele bradou.
Ao ataque! Partiu em direção a mesa, ela não escaparia.
Escapou. Quem imaginaria que uma barata seria inteligente a ponto de entrar voando pela janela, quiçá de se abrigar em baixo da mesa, lugar inacessível ao nosso pobre justiceiro e sua fiel vassoura?

Reforços!
- Mãe, corre aqui!
- Que isso, garoto? Cadê a tal barata?
- Em baixo da mesa, ali onde está o gabinete. O plano é o seguinte: eu levanto a mesa e você acaba com ela.
- Que? Presta atenção, menino. Você vai quebrar esse negocio todo se levantar isso.
- Mãe, é a única maneira. – disse com um olhar que dizia que era tudo ou nada, ou eles ou a barata.
- É a única maneira seu nariz. – ela arranca a vassoura de sua mão e com toda sua bravura ataca a barata em seu fugaz esconderijo. Em vão.

Mas eis que inesperadamente a dita cuja voa em um ágil contra-ataque. Ela acelera cada vez mais rumo aos fortes guerreiros domésticos. A mãe, em uma atitude desesperada, parte com ódio no olhar para a batalha final. O ataque é tão feroz que a vassoura se quebra.
Agora com apenas meio poder de fogo, resta ao primeiro e único destinado a destronar a barata de seu reinado maligno. Sim, ele, o guerreiro primordial, o Garoto.

Uma luta terrível, com apenas um vencedor.
Ele volta vitorioso para o quarto. Guarda com cuidado a vassoura partida, único registro verdadeiro de um dos piores embates de sua vida. E olha sorridente para os restos mortais de sua digna inimiga, que jaz na lixeira.

Vinícius Vargas

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Qüinquagésimo sétimo andar.

Pulou do qüinquagésimo sétimo andar. Tinha a esperança de sentir a toda a sua vida passar pelos olhos enquanto o vento arrebentava sua respiração e o sangue corria mais rápido por suas artérias. Ele saltou. Sabia que havia feito isso não por covardia, embora não fosse o mais corajoso da turma ninguém tinha o direito de o chamar de covarde. Havia feito por medo. Medo de fracassar, medo de pegar o caminho errado e, lá na frente, ter de agüentar o peso de saber que aquela única escolha acabou com quase noventa por cento de seus sonhos e ideais.

Quadragésimo oitavo andar. Ele começou a pensar no que fez, segundos atrás: “meu Deus, eu acabei de pular de um prédio. É, eu pulei. Interessante...” – sua cabeça voltou para as únicas coisas que conseguiram fazê-lo pensar duas, três, setecentas vezes antes de cometer o ato. A vida de seus pais acabara de acabar, embora ainda tivessem o filho mais novo, o mais velho, agora no quadragésimo segundo andar, já havia feito sua escolha. E não era das mais bonitas. E o tal caçula? O que pensaria ao saber que o irmão mais velho agora não passava de uma pasta rósea na calçada de concreto? Já não importava mais. Já não tinha volta. Não que ele quisesse alguma.

Trigésimo primeiro andar. Foi a vez da lógica gritar ao seu ouvido. Se fosse para acabar assim, ele poderia muito bem ter esperado alguns anos a mais e ver onde o rio desembocaria. Para que essa pressa toda? Talvez melhor fosse permanecer no sonho, no sentimento de que conseguiria. Ao menos pra ele isso soava mais digno do que cair de um prédio como um fracassado que poderia ter trocado os pés pelas mãos em algum momento no passado. Mas enfim, isso também já não importava muito, se for levar em consideração o fato de já estar no vigésimo terceiro andar e que ganhava cada vez mais velocidade.

Décimo andar. As coisas ficaram mais claras, ele enfim abriu os olhos e viu tudo. Tudo estava ali na sua frente. Tudo era a primeira bicicleta que ele ganhou, tudo era seu pai o carregando pra enfermaria quando caiu do barranco, tudo era sua mãe dizendo que ele estava magro demais e que só poderia é estar com um número incontável de vermes, tudo era seu irmão que, apesar das brigas, pedia sua ajuda pra passar alguma fase em algum jogo que ele já não lembrava mais qual era, tudo era a primeira garota que ele abraçou e sentiu que era com ela que passaria o resto dos seus dias, tudo era a primeira briga que ele entrou, sabe-se lá o porquê. E ele viu, no terceiro andar, que ele conseguiria. Viu o que ele tinha nas mãos - ou melhor, na calçada - e que conseguiria tudo que desejasse, que deveria ter esperado um pouco mais, que ali jazia apenas um dos vários contos que o levaria aonde ele menos esperava, mas que seria o lugar onde ele mais sonhou estar em toda sua vida.

Esperou acordar. Ele esperou que o chão a milímetros do seu nariz fosse o travesseiro e que agora estava pronto pra sair e ter a certeza de que a todas as dúvidas, e todas as demais certezas, não passavam de um jogo de azar que você só sabe que ganharia quando já perdeu.

Ele esperou, mas pela última vez, já era tarde demais.


Vinícius Vargas